Estudos de Género e Neoliberalismo - os últimos 20 anos

ex æquo n.º 42

APELO A CONTRIBUTOS/CALL FOR PAPERS

Coordenação: Maria João Silveirinha – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e ICNOVA.
Cláudia Álvares – Instituto Universitário de Lisboa – ISCTE‑IUL e CIES‑IUL 

Data de Submissão – 30 de junho de 2020
(a publicar em dezembro de 2020)

APRESENTAÇÃO
Ainda que o pensamento e as práticas neoliberais sejam temas de considerável debate, parece consensual que o enfatizar da intervenção mínima do Estado e a extensão das relações de mercado em todos os aspetos atividades económicas e sociais são centrais ao seu projeto. David Harvey (2005) fez notar como estas ideias exerceram considerável influência sobre um grande conjunto de instituições e organizações norte-americanas e internacionais, incluindo a educação, os media, as indústrias financeiras e bancárias e as agências reguladoras governamentais. Tocando todos os aspetos das nossas vidas, conscientes e inconscientes «o neoliberalismo tornou-se, em suma, hegemónico como um modo discursivo. Ele tem efeitos alargados sobre as formas de pensamento a ponto de se incorporar no modo de senso comum em como muitos de nós interpretamos, vivemos e entendemos o mundo» (Harvey 2007, 23). Nesse sentido, transformou-se num regime quase total e globalizante que sustenta tanto as lógicas dos investimentos e da distribuição dos recursos públicos quanto os incentivos à formação de um «sujeito neoliberal», que otimiza a governação do indivíduo segundo regras do mercado balizadas em termos de eficácia, trabalho individual esforçado e performance.
Brown descreve o neoliberalismo como uma «ordem de razão normativa» que «transmogrifica todos os domínios e empreendimentos humanos, juntamente com os próprios humanos, de acordo com uma imagem específica do económico» (2015, 10). No seu centro, a retirada do Estado da responsabilidade pela segurança  económica do conjunto dos seus cidadãos e cidadãs, além de ter o efeito de transferir os riscos do coletivo para o indivíduo, afeta claramente a segurança social e os serviços públicos. Ora, dada a forma como os mercados e as relações económicas são gerados pelo género, são as mulheres que sofrem mais o impacto dessas políticas. Torna-se, assim, fundamental pensar as relações entre neoliberalismo e género, numa articulação que cedo as feministas sentiram de modo urgente.
No início dos anos 80, Zillah Eisenstein previu que o feminismo liberal tinha um futuro radical, que as contradições das mulheres que ingressam na força de trabalho tornariam a subordinação privada insustentável e a discriminação pública visível, gerando um impulso para a mudança estrutural (Eisenstein 1993). Trinta anos depois, diferentes feministas, incluindo a própria Eisenstein (2007), reconhecem que o feminismo caminha pelos corredores do poder corporativo e estatal, mas que, em vez de desafiar o capitalismo, parece ter-se tornado íntimo dele. Por isso, na última década, em particular, as ligações entre o feminismo e os esforços neoliberais de construção de uma sociedade de mercado livre e a cooptação do próprio feminismo pelo neoliberalismo começaram a ser particularmente questionados. Estava assim aberto o debate sobre até que ponto o mainstreaming do feminismo serviu para remover qualquer vestígio da política feminista (McRobbie 2009) e as formas pelas quais  o feminismo seria cúmplice do neoliberalismo no seu foco sobre as exigências de «reconhecimento» à custa de um foco mais socialista na redistribuição (Fraser 2009).
Recorde-se, a este propósito, que o Mainstreaming foi adotado como estratégia fundamental de mudança social na IV Conferência Mundial sobre a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz, realizada em Pequim, cujos 25 anos se assinalam em 2020. 
A ligação entre o feminismo e o neoliberalismo tem sido designada de diferentes formas. Kantola e Squires (2012) falam de um «feminismo de mercado», Eisenstein (2009) de um «feminismo de mercado livre» ou «feminismo hegemónico», Roberts (2012) de «feminismo transnacional de negócios», Rottenberg, (2017) de «feminismo  neoliberal», Elias (2013) de «pós-feminismo». No domínio específico dos estudos da comunicação e dos media, as ligações entre o neoliberalismo e os media recebem a designação de «pós-feminismo» (McRobbie 2004, 2009; Gill 2007), Banet-Weiser (2018) de «feminismo popular», ou ainda de uma combinação de tudo isto (Banet-Weiser et al. 2019). De um modo mais amplo, a literatura sobre o ativismo feminista na era neoliberal preocupa-se predominantemente com a cooptação do primeiro pela segunda e, correspondentemente, com a incapacidade do feminismo servir como vetor de resistência às políticas e lógicas neoliberais.
Ao interpelar as mulheres no sentido de se assumirem como sujeitos desejantes, potenciando novas – e múltiplas – identidades através do consumo, até que ponto é que a lógica neoliberal está a fazer recair a responsabilidade de alteração do status quo sobre o indivíduo e não o coletivo? De facto, o movimento feminista, na sua prática intelectual e compromisso político, depende de uma coletividade mobilizada em torno do objetivo de mudar a sociedade segundo os interesses de todas as mulheres, ao invés de indivíduos particulares. Como é que um contexto liberal, que privilegia o direito a ser-se livre da intrusão do Estado e que coloca a ênfase na responsabilidade pessoal de cada pessoa no seu próprio melhoramento e bemestar, se concilia com todo um legado feminista que aponta para as mulheres enquanto
coletividade «essencialista»?
Nesta edição da revista ex æquo, reposicionamos a questão em torno dos estudos de género na era neoliberal e olhamos para os últimos 20 anos do amplo campo dos estudos de género.
É precisamente da academia dos Estudos sobre Mulheres/de Género/Feministas (ESM/G/F) que têm vindo importantes contribuições que procuram pensar como, por exemplo no contexto português, «a atual lógica neoliberal promoveu a mercantilização no ensino superior, individualização, cargas de trabalho excessivas e performatividade na academia» (Augusto et al 2018, 107; ver também Oliveira & Augusto, 2017) ou como «crescente valorização da produtividade na ciência gerou oportunidades para os EMGF, mas também criou um ambiente de exaustão e depressão que está a ter impactos muito nocivos nos corpos, relações e trabalho científico de quem trabalha em EMGF» (Pereira 2019, 171). 

No centro do nosso olhar, neste número, estarão as implicações para os ESM/G/FE da forma como a racionalidade económica neoliberal procura transformar as sociedades capitalistas e como, sob o seu regime, os governos deixam de ter uma responsabilidade prática ou ética perante o seu coletivo de cidadãs e cidadãos, abdicando das obrigações de nivelar o campo de ação para todas as pessoas prejudicadas pela discriminação sistémica e apelando à escolha individual e à responsabilidade pessoal como antídotos para as barreiras de preconceito e discriminação.

Mas será o neoliberalismo um projeto ou coisa singular, ou «um campo de forças cujas articulações imperfeitas criam espaços para formas inesperadas e potencialmente perturbadoras de agência»? (Newman 2017, 99) 

Percorrer os últimos 20 anos da interceção entre género e neoliberalismo poderá dar-nos algumas respostas que toquem não apenas os estudos de género, mas os caminhos dos feminismos nessas últimas duas décadas. Talvez, como indica Prügl (2015, 615), precisemos de pensar «a ‘neoliberalização do feminismo’, reconhecendo a diversidade e a natureza mutável dos vários feminismos e a fluidez das suas fronteiras». 

Por isso, será importante pensar a articulação entre as questões de emancipação das mulheres e neoliberalismo pressupondo «que políticas são as melhores políticas feministas, que questões e formas de democracia precisam de ser enfatizadas, que compromissos são precisos na luta pela justiça de género e contra o neoliberalismo, são questões que as mulheres ativas em cada região e país precisam de decidir» (Funk 2013, 194).

A ex aequo convida, assim, à submissão de trabalhos que se enquadrem no amplo âmbito das questões que aqui levantamos, incluindo, mas não se restringindo a, estudos sobre:
- gestão das universidades, políticas científicas e valor epistémico dos estudos de género, em Portugal
- desafios dos estudos de género em face das perspetivas pós-coloniais, descoloniais e LGBTIQ;
- implicações das críticas ao feminismo no reconhecimento epistemológico dos estudos de género;
- linhas de contestação dos estudos de género de múltiplas origens, entre outras, nos movimentos conservadores antigénero e nas correntes feministas da diferença sexual;
- contestação das ciências sociais e os estudos de género;
- discussão do mainstreaming enquanto estratégia de mudança social.
- economia política, corporativismo, lideranças;
- estudos sobre media, jornalismo, publicidade, redes sociais, consumo.
- estudos sobre pós-feminismo, feminismo popular, feminismo liberal.

Referências
Augusto, Amélia, Catarina Sales Oliveira, Emília Araújo e Carla Cerqueira. 2018. «The Place for Gender Research in Contemporary Portuguese Science and Higher Education Policies within the Context of Neo-liberalism». In Gender Studies and the New Academic Governance,107-128. Wiesbaden: Springer.
Banet-Weiser, Sarah. 2018. Empowered: Popular Feminism and Popular Misogyny. Durham, NC: Duke University Press 
Banet-Weiser, Sarah, Rosalind Gill e Catherine Rottenberg. 2019. «Postfeminism, popular feminism and neoliberal feminism? Sarah Banet-Weiser, Rosalind Gill and Catherine Rottenberg in conversation». Feminist Theory, p 1464700119842555.
Brown, Wendy. 2015. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. Cambridge, MA: The MIT Press.
Eisenstein, Hester. 2009. Feminism Seduced: How Global Elites Use Women’s Labor and Ideas to Exploit the World, Boulder, CO: Paradigm Publishers.
Eisenstein, Zillah R. 1993. The Radical Future of Liberal Feminism. Boston: Northeastern University Press.
Eisenstein, Zillah. 2007. Sexual Decoys: Gender, Race and War in Imperial Democracy. London: Zed Books.
Elias, Juanita. 2013. «Davos Woman to the Rescue of Global Capitalism: Postfeminist Politics and Comptitiveness Promotion at the World Economic Forum», International Political Sociology, 7 (2), pp. 152–69. «
Fraser, Nancy. 2009. «Feminism, Capitalism and the Cunning of History», New Left Review (56): 97–117.
Funk, Nanette. 2013. «Contra Fraser on Feminism and Neoliberalism», Hypatia, 28 (1), pp.179–96.
Gill, Rosalind. 2007. «Postfeminist media culture: Elements of a sensibility». European Journal of Cultural Studies 10 (2): 147-166.
Harvey, David. 2005. A Brief History of Neoliberalism, Oxford University Press.
Kantola, Johanna e Judith Squires. 2012. «From State Feminism to Market Feminism», International Political Science Review, 33 (4), 382–400.
McRobbie, Anagela. 2004. «Post-feminism and popular culture». Feminist Media Studies 4 (3): 255-264.
McRobbie, Anagela. 2009. The Aftermath of Feminism: Gender, Culture and Social Change,London: Sage
Oliveira, Catarina Sales, & Augusto, Amélia. 2017. «El gender mainstreaming en la academia portuguesa». In Ciencia, Técnica y Mainstreaming Social (1): 17-27. Universitat Politècnica de València.
Pereira, Maria do Mar. 2019. «You can feel the exhaustion in the air around you»: The mood of contemporary universities and its impact on feminist scholarship. Ex aequo 39: 171-186.
Prügl, Elisabeth. 2015. «Neoliberalising Feminism», New Political Economy, 20(4): 614-631.
Roberts, Adrienne. 2012. «Financial Crisis, Financial Firms … And Financial Feminism? The Rise of ‘Transnational Business Feminism’ and the Necessity of Marxist-Feminist IPE», Socialist Studies/Études socialistes, 8 (2), pp. 85–108.
Rottenberg, Catherine. 2017. «Neoliberal Feminism and the Future of Human Capital», Signs: Journal of Women in Culture and Society 42 (2): 329-348.

Acesso livre para quem lê e para quem escreve.

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