Género e status em política internacional:
Dinâmicas de cooperações, conflitos e ativismos

Coordenação:
Vânia Carvalho Pinto (Instituto de Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasil) (vcp.unb@gmail.com)
Andrea Fleschenberg (Instituto de Estudos Asiáticos e Africanos, Universidade Humboldt de Berlim, Alemanha) (andrea.fleschenberg@hu-berlin.de)

NOVO PRAZO DE ENVIO – 30 JUNHO 2019 (a publicar até dezembro 2019)

A ex æquo aceita permanentemente contributos para as secções extra-temáticas de Estudos e Ensaios e Recensões.

Status é um elemento crucial do relacionamento entre os estados e atores internacionais. Como um conjunto de crenças coletivas e partilhadas acerca da posição de cada um dos atores, este grupo de percepções determina quem consegue o quê, quando e em que condições. São percepções que clarificam os direitos, obrigações e padrões de deferência que um ator pode antecipar, assim como as expectativas existentes em termos de comportamento para com aqueles em posições dominantes ou subordinadas. Como a aquisição de status acarreta um tratamento favorável em diversas esferas (Weiss e Fershtman 1998, 802), assim como capacidade de acesso a países e grupos, influência na definição da agenda, e benefícios materiais (Jakobsen, Ringsmose e Saxi 2018, 2), obtê-lo é considerado altamente desejável.

As crenças subjacentes à ideia de status são baseadas no valor imputado tanto a atributos materiais como imateriais. De modo não exaustivo, podemos referir a riqueza, capacidades coercitivas, cultura, posição demográfica, organização sociopolítica e influência diplomática; assim como a capacidade do estado ou organização de aderir aos standards civilizacionais da época (Larson, Paul e Wohlforth 2014, 7, 20-21, 25; Neumann 2014, 85-114). Todos estes marcadores assumem contornos diferentes, variando ao longo de um contínuo entre status e estigma, consoante a época histórica e localização geográfica. O entendimento acerca do que é considerado ‘bom’ e ‘desejável’ em termos de cultura, civilização, organização sociopolítica, para referir somente alguns, não é estanque nem imutável (ver Zarakol 2014, 319-324; Renshon 2017, 36).

Segue-se que na evolução normativa da sociedade internacional, em que valores como a não discriminação, a proteção do ambiente, o humanitarismo, entre outros (Mozaffari 2001; Gong 2002, 82), têm ocupado cada vez mais espaço na estruturação de hierarquias sociais de poder entre os estados, os direitos das mulheres ocupam um lugar singular. Geralmente tidos como indicativos do grau de ‘avanço’ e de ‘modernidade’ de um estado (ver, e.g., Jayawardena 1994; Towns 2007, 2016; Abu-Lughod 2009), os direitos das mulheres têm-se constituído em um elemento central das políticas externas de países tão diversos como a Suécia e os Emirados Árabes Unidos.

Além disso, a nível de relações dentro do norte, e entre o norte e o sul globais, houve, desde a década de 90, uma série de intervenções – tanto militares como não-militares –, assim como operações de assistência oficial ao desenvolvimento, em cuja pauta constavam preocupações com direitos das mulheres e/ou com gender mainstreaming (por exemplo os casos do Afeganistão, Iraque e Balcãs). Estas intervenções foram controversas – considerando contextos pré-existentes de legados coloniais e de geopolíticas neoimperiais –, mas também geraram uma série de iniciativas, não só por parte de instituições governamentais nas áreas de policy-making, mas também pela sociedade civil. Movimentos transnacionais de mulheres, redes e alianças, assim como organizações locais de mulheres e ativistas desempenharam um papel relevante nestas configurações, frequentemente marcadas por constelações de conflito e ruptura aos níveis macro e meso. Destaque para atuações de organizações e movimentos transnacionais como o Women Living under Muslim Laws (WLUML) e a Musawah; regionais como o Women’s Regional Network; ou locais como o Afghan Women’s Network.[1] Mercê destas interações e engajamentos, as normas e questões de género tornaram-se assim:

  1. um chip de barganha em conflitos transnacionais particulares, assim como um instrumento para gestão de dissidências políticas (e.g., no Afeganistão e no Paquistão);
  2. um instrumento importante para as/os defensoras/es de direitos das mulheres em termos de estratégia, advocacia, lobbying, formação de alianças e recolha de fundos tanto aos níveis transnacional como internacional (e.g. como evidenciado pelo trabalho da Musawah e pelo da Afghan Women’s Network).

Entre os vários efeitos, destaque para programas de apoio a organizações de mulheres, à advocacia de ONGs, assim como na prestação de serviços – incluindo a educação de meninas, e construção de abrigos para mulheres – as cotas de género, leis de estatuto pessoal ou a proibição da violência com base no género, entre vários outros. Estas iniciativas foram recebidas com apreço por alguns atores, mas fortemente criticadas por outros. Relativamente aos últimos, se, por um lado, atores conservadores, pertencentes tanto ao governo quanto à sociedade civil denominaram estas ações como práticas de Westoxification;[2] por outro, formou-se uma crítica a partir de uma perspectiva pós-colonial em que estas iniciativas, entendidas como intervenções, foram atribuídas a uma estratégia neoimperial civilizatória que seria parte de uma lógica de globalização neoliberal. Para tal contribuiu a relação de poder assimétrica entre os países intervenientes e os sob intervenção, pertencentes ao norte e ao sul globais, respectivamente.

Neste sentido, emergiram contestações não só a feminismos ocidentais por parte de movimentos de mulheres (Roces 2010), como também a outros feminismos (como os religiosos ou os liberais) dentro dos movimentos de mulheres, tanto locais como transnacionais. Estes são manifestamente heterogéneos e multivocais relativamente a interpretações acerca de questões sobre mulheres e seus direitos, como também no que diz respeito ao nexo entre religião e género (Ahmed-Gosh 2015). Emergiram também contramovimentos, muitas vezes religiosos e conservadores e por vezes transnacionais (ver Derichs e Fennert 2014 sobre casos no Sudeste asiático e na região MENA).

No norte global, apesar de os termos do debate serem colocados de modo distinto, mercê de diferentes configurações histórico-sociais, económicas e políticas, o género continua a figurar de modo central em debates nacionais e internacionais, servindo também como indicativo da natureza mais ou menos progressiva dos estados. A União Europeia, por exemplo, entende as relações de género como uma componente importante tanto das suas políticas de alargamento ao leste europeu (Pető e Manners 2006, 97-111), como de vizinhança no Mediterrâneo e na Eurásia (Gündüz 2015). Além disso, como mencionado previamente, os direitos das mulheres foram eleitos tanto pela Suécia, um país escandinavo, como pelos Emirados Árabes Unidos, um país árabe, como arenas centrais para a construção de estratégias de distinção em relação aos seus respectivos vizinhos. No caso da primeira, esta proclamou em 2015 uma política externa feminista, enquanto os Emirados estão ativamente engajados numa campanha internacional para serem considerados um modelo para os direitos das mulheres no Médio Oriente (ver Carvalho Pinto 2018, no prelo).

Torna-se, portanto, evidente de que a construção de status com base nos direitos das mulheres tem sido um driver importante na interação entre atores internacionais, regionais e transnacionais, que atuam tanto intra- como inter-regiões. Contudo, apesar da sua saliência empírica, este tema está ainda ausente da literatura sobre status. Sendo assim, este dossier especial convida a contribuições que se debrucem sobre os seguintes temas:

  • Trabalhos de cariz mais geral que se engajem com a literatura sobre status e que contribuam para a teorização da relação entre o último e género;
  • Como diferentes abordagens de política externa, incluindo mas não limitadas a abordagens de soft power e intervenções, militares ou não, podem-se configurar em estratégias de cooperação ou conflito visando a prossecução de uma política de status;
  • Casos empíricos (do Norte e Sul globais) que abordem como estados ou grupos de estados, organizações internacionais ou supranacionais e alianças regionais promovem determinadas normas de género em fóruns/organizações internacionais como parte de uma estratégia de construção de status. Destaque para o papel de norm setters de países como a Noruega e a Suécia, assim como de debates relativamente à ratificação e às reservas do CEDAW e da DEVAW, e de iniciativas relativas à Resolução 1325 (2000);[3]
  • Como esta difusão de normas de género – resultantes da associação com políticas de status – se constituem em repertórios translocais e suas consequências, não só para movimentos e contramovimentos de mulheres e ativistas, como também para a everyday life das mulheres;
  • Teorização e investigação destas práticas e políticas discursivas a partir de uma perspectiva feminista das relações internacionais, com particular referência a possíveis instrumentos epistemológicos, teóricos e metodológicos a serem utilizados neste estudo;
  • Perspectivas pós-coloniais, subalternas e decentered, acerca da relação entre género e busca de status por parte de atores regionais, internacionais e transnacionais.

Referências:

Abu-Lughod, Lila. 2009. “Dialects of Women’s Empowerment: The International Circuitry of the Arab Human Development Report 2005.” International Journal of Middle East Studies (41) 83–103.

Ahmed-Gosh, Huma. 2015. Contesting Feminisms - Gender and Islam in Asia. Albany: SUNY Press.

Carvalho Pinto, Vânia. 2018, no prelo. “Signalling for status: UAE and women's rights.” Contexto internacional: journal of global connections.

De Carvalho, Benjamin e Iver B. Neumann (orgs.). 2015. Small state status seeking. Norway’s Quest for International Standing. New York, Abindon: Routledge.

Derichs, Claudia (in cooperation with) Dana Fennert. 2014. Women's Movements and Countermovements. The Quest for Gender Equality in Southeast Asia and the Middle East. Cambridge: Cambridge Scholars Press.

Gong, Gerrit W. 2002. “Standards of Civilization Today.” In Globalization and Civilizations, organized by Mehdi Mozaffari , 77-96. New York: Routledge.

Gündüz, Z. Y. 2015. “Gendering the neighbors: The European Union’s policies on gender and equality on Saharan Africa and Central Asia.” In The European Union’s Broader Neighborhood: Challenges and opportunities for cooperation beyond the European Neighborhood Policy, organized by S. Gstöhl e E. Lannon, 162-186. Abingdon: Routledge.

Jakobsen, Peter Viggo, Jens Ringsmose and Håkon Lunde Saxi. 2018. “Prestige-seeking small states: Danish and Norwegian military contributions to US-led operations.” European Journal of International Security (3) 2. DOI:10.1017/eis.2017.20

Jayawardena, Kumari. 1994. Feminism and Nationalism in the Third World, London: Atlantic Highlands; New Jersey: Zed Books.

Larson, Deborah Welch, T. V. Paul and William C. Wohlforth. 2014. “Status and World Order.” In Status in World Politics, organized by T.V. Paul, Deborah Welch Larson and William C. Wohlforth, 3-32. Cambridge: Cambridge University Press.

Mozaffari, M. 2001. “The Transformationalist Perspective and the Rise of a Global Standard of Civilization.” International Relations of the Asia-Pacific (1): 247-264.

Pető, Andrea and Ian Manners. 2006. “The European Union and the Value of Gender Equality.” In Values and Principles in European Union Foreign Policy, organized by Sonia Lucarelli and Ian Manners, 97-113. London; NY: Routledge.

Pu, Xiaoyu and Randall L. Schweller. 2014. “Status Signalling, Multiple Audiences, and China’s Blue-Water Naval Ambition.” In Status in World Politics, organized by T.V. Paul, Deborah Welch Larson and William C. Wohlforth, 141-164. Cambridge: Cambridge University Press.

Renshon, Jonathan. 2017. Fighting for status. Hierarchy and conflict in world politics. Princeton and Oxford: Princeton University Press.

Roces, Mina and Louise Edwards. 2010. Women's Movements in Asia: Feminisms and Transnational Activisms in Asia. London and New York: Routledge.

Towns, Ann. 2007. “The Status of Women and the Ordering of Human Societies along the Stages of Civilization.” In Civilizational Identity: The Production and Reproduction of “Civilizations” in International Relations, organized by Martin Hall and Patrick Thaddeus Jackson, 167-179. Basingstoke: Palgrave.

Towns, Ann. 2016. “Civilization.” In Oxford Handbook on Feminist Theory, organized by Lisa Disch and Mary Hawkesworth, 79-99. Oxford: Oxford University Press.

Ward, Steven. 2017. “Lost in Translation: Social Identity Theory and the Study of Status in World Politics.” International Studies Quarterly (61): 821–834.

Weiss, Yoram and Chaim Fershtman. 1998. “Social status and economic performance: A survey.” European Economic Review (42): 801- 820.

Wohlforth, William C. et al. 2017. “Moral authority and status in International Relations: Good states and the social dimension of status seeking.” Review of International Studies 44(3): 526-546.

Zarakol, Ayşe. 2014. “What made the modern world hang together: socialisation or stigmatisation?” International Theory (6): 311-332.

 

[1] Women’s Regional Network é uma rede de mulheres líderes da sociedade civil que trabalha para o avanço dos direitos das mulheres e da paz regional no Afeganistão, Paquistão e Índia (https://www.womensregionalnetwork.org). Afghan Women’s Network, é uma organização não governamental criada em 1996 por mulheres afegãs após a Conferência Mundial sobre as Mulheres em Pequim, que trabalha para capacitar as mulheres e garantir a sua participação igualitária na sociedade afegã (http://www.awn-af.net). Musawah é um movimento global pela igualdade e justiça na família muçulmana, liderado por feministas (http://www.musawah.org). WLUML era uma rede internacional de solidariedade que oferece informação, apoio e um espaço colectivo para mulheres, cujas vidas são determinadas, condicionadas ou governadas por leis e costumes supostamente derivados do Islão (http://www.wluml.org).

[2] O termo descreve um fascínio com e dependência do Ocidente em detrimento de ligações culturais, tradicionais e históricas com o Islão e o mundo Islâmico. Baseado na imitação indiscriminada do ocidente, denota um sentido de intoxicação que leva à alienação cultural. Ver: http://www.oxfordislamicstudies.com/article/opr/t125/e2501

[3] CEDAW: Convenção Para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres, 1981; DEVAW: Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, 1993. Resolução 1325 (2000) reconhece que as mulheres sofrem de forma diferente os impactos de guerra, e reafirmou a necessidade de reforçar o papel das mulheres na tomada de decisão com relação à prevenção e resolução de conflitos.

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